Cuspindo fogo em tudo e em todos, boa parte da sátira é, na verdade, preconceito
De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro f***r
Assim (des)classificou sua cidade natal, Salvador (BA), o poeta Gregório de Matos Guerra, na primeira estrofe de Define a sua Cidade. O poema está na coletânea de 25 textos que será cobrada como leitura obrigatória no vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2015.
Os poemas têm, basicamente, três estilos: satírico, religioso e lírico. Segundo o professor de literatura da UFRGS Antônio Marcos Vieira Sanseverino, que estudou a obra de Gregório no mestrado, esses estilos apareceram simultaneamente e não representam fases.
— Após estudar Direito em Portugal, onde foi juiz, Gregório voltou a uma Bahia em decadência, depois da crise da cana-de-açúcar. Muito de sua sátira é, na verdade, preconceito. É preciso ter muito cuidado com o riso, porque nem sempre ele é crítico. Pode ter um lado conservador. A obra dele já foi descrita como um "olhar da Inquisição".
Como não havia imprensa no Brasil do século 17, por proibição de Portugal, Gregório produzia seus textos e os lia na rua. Muitos deles não eram assinados, por isso, boa parte da obra foi atribuída ao poeta posteriormente.
— Era o padre Vieira na igreja e o Gregório na praça — explica Sanseverino.
Camões e o amor
O último poema da lista, Definição do Amor — Romance, tem uma certa relação com o clássico camoniano Amor é fogo que arde sem se ver. Gregório também recorre a imagens contraditórias como "um antídoto que mata","uma liberdade presa" e "uma chaga que deleita", a exemplo de "é um contentamento descontente/é dor que desatina sem doer", nas palavras de Luís de Camões. A diferença crucial está no tom. Os versos do baiano dificilmente renderiam uma balada açucarada ao violão:
E isto é Amor? é um corno.
Isto é Cupido? má peça.
Aconselho que o não comprem
ainda que lhe achem venda.
Boca do Inferno
Implacável e bagaceiro, Gregório foi apelidado de"Boca do Inferno"por criticar figuras da sociedade, como o padre Lourenço Ribeiro (leia o poema Ao Padre Lourenço Ribeiro, Homem Pardo que foi Vigário da Freguesia do Passé). Ele não tinha receio de usar palavrões:
— Por não ser branco, Lourenço não poderia ser padre. Gregório dizia que ele cheirava a mondongo, ou seja, que vinha da senzala. Ele trazia à tona o que julgava serem os pecados capitais da Bahia — diz Sanseverino.
Fonte: Zero Hora - 22/04/2014
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